Está no DNA
 



Contos

Está no DNA

Vanda Viegas


Nas manhãs sem sol acordava silenciosa e cabisbaixa, como se estivesse recolhida em uma mala de mão dividindo o espaço com as lembranças do passado. Morava com seus pássaros de estimação. Os animaizinhos conheciam-na como ninguém. Solidários. Refugiavam-se em gaiolas penduradas nos galhos das árvores.

O casebre de madeira envelhecida coberta com tinta de um cinza desbotado, mal se via da rua em meio ao arvoredo e arbustos. Vestes gastas e puídas, cheias de significados. Cabelos brancos, presos no alto da cabeça. O vestido ia até o peito do pé. E, por cima, usava um avental com muitos bolsos em toda a volta.

Não fosse pela cicatriz profunda na face direita, e que repuxava o canto da boca em direção ao pescoço, diria que esse rosto foi dono de uma beleza ímpar. Olhos negros com olhar de caverna. Mãos habilidosas no manejo das chaves, muitas chaves em molhos nos bolsos.

No instante seguinte, porém, reagia, chamava a bicharada e, cantarolando, ia para beira do fogão a lenha preparar um bolo. Ele até crescia, ficava macio e fofinho, mas havia uma espécie de vazio ao provar uma fatia. E em cada pedaço: ausência, privação e abandono. Escolheu pensar que o açúcar estava vencido. O choro escondido vindo do quarto da mãe, ainda ecoava na memória. Com ela seria diferente!

Prometeu, mas não se ouviu.

O tempo mostrou que, muito além do modismo, as vestes longas das mulheres da família eram disfarces. Nesse devaneio, caminhava até o portão da frente, seu local preferido. Era cria desse vilarejo. Não só conhecia a vizinhança, como também as histórias de vida entrelaçadas com as suas.

Irritava os vizinhos com a mania de trocar a filiação dos que ali passavam.

— Olá, meu guri! És o filho do Lalau?

— Não, sou o filho do Alfredo.

— Olá, minha menina! És a filha do Marcelino?

— Não, sou a do Juvenal.

Diziam que era a maneira de ter com quem conversar. Mas o dia em que ela viu a filha da Dinorá - moça bonita, alegre e sorridente - passar de mãos dadas com o filho do Raul...

Silenciou.

O silêncio era enfiado goela abaixo nas mulheres da família - como regra de etiqueta - durante as refeições. — Nunca falem de boca cheia.

Recolheu o sorriso.

Colocou a mão direita no bolso e retirou do molho de chaves apenas uma e apertou-a contra o peito numa tentativa, em vão, de chavear a dor; dessa vez, vinha à galope. E as forças que a mantiveram firme até aqui estavam prestes a abandoná-la. A dor era visível no franzido do cenho. Ao coração, foi solicitado aumento do bombeamento cardíaco que, ao sequestrar o sangue da periferia deixou à mostra uma palidez intensa. Os bichinhos de estimação

aproximaram e postaram-se todos a sua volta em reverência à fisionomia transformada em manhãs de nuvens carregadas. E, com a outra mão, ela secou uma lágrima sem sabor que insistia em descer pelo rosto já pálido. Conferiu a cicatriz. O choro da mãe, agora forte e convulsante, toma conta do seu corpo.

Quer gritar para a filha da Dinorá, mas o grito prende-se ao último suspiro. Fica trancafiado para sempre em sua garganta. No mesmo momento em que o corpo marcado, mas escondido pelas vestes, cai sem vida.

Sem ver aquele rosto bonito, alegre e sorridente desfigurar.

***

Vanda Viegas é Enfermeira graduada e licenciada pela UFRGS. Atuou no hospital de Pronto Socorro de Porto Alegre. Participa do Curso Livre de Formação de Escritores da Metamorfose.

Revisão e leitura crítica de Mitcheia Guma.

 

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